Novembro 21, 2024

Minuto da consciência crítica: Poderia ter sido aqui - A invenção Argentina Destaque

Entre os países da América Latina que sofreram ditaduras militares no século passado, a Argentina se destaca em função de dois diferenciais tenebrosos.

O número de vítimas dos crimes de lesa-humanidade naquele país é quase cem vezes maior que o brasileiro: foram cerca de 30 mil jovens argentinos contra as 462 vítimas reconhecidas oficialmente no Brasil.

Além disso, o Estado ditatorial argentino instituiu a tenebrosa figura ("exportada" para as outras ditaduras do Cone Sul) do desaparecimento forçado de detentos.

Essa é a expressão utilizada pelo advogado e professor da Unifesp Renan Quinalha na introdução de “O ex-preso desaparecido como testemunha dos julgamentos por crimes de lesa-humanidade”, publicado na Argentina pela Fundación Eduardo Luís Duhalde em 2015 e em 2018 no Brasil - às vésperas da eleição que instituiu na Presidência um militar reformado de extrema direita, admirador do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra.

O livro é uma coletânea de artigos e depoimentos de Duhalde, secretário nacional de Direitos Humanos entre 2003 e 2012 - e Fabiana Rousseaux, diretora do Centro de Atenção às Vítimas de Violações de Direitos Humanos Dr. Fernando Ulhoa.

Fabiana é filha de um casal de desaparecidos políticos. Ela e Duhalde foram figuras fundamentais no processo de redemocratização argentino, assim como o prefaciador do livro, Carlos Rozasnski, presidente do tribunal penal de La Plata.

A política sistemática de promover o desaparecimento dos corpos de militantes assassinados na tortura é a mais perversa das violações de direitos humanos exer- cida durante as ditaduras latino-americanas nas décadas de 1970 e 1980.

Além da crueldade atroz das torturas praticadas contra prisioneiros indefesos (mantidos sob custódia do Estado, vale lembrar) que com frequência resistiram até a morte sem denunciar seus companheiros, o Estado ditatorial fez com que os corpos desaparecessem.

Tais graves violações de direitos humanos são imprescritíveis. A crueldade praticada contra o prisioneiro continua a ser imposta a seus familiares, condenados a um luto impossível.

Sobre eles recai tanto a tarefa infrutífera da busca quanto a dolorosa decisão de considerá-la encerrada.

Sem um corpo a ser sepultado e homenageado, o luto se torna impossível e a culpa, inevitável.

"Deveríamos ter tentado mais? Deveríamos seguir buscando?" E mais: como elaborar o luto de um parente cujo funeral não pode existir?

"Essa ausência, vivida como um trauma, permanecerá no horizonte dos que ficaram, e sempre marcará presença como lembrança", escreve o prefaciador.

O primeiro presidente argentino na redemocratização, Raúl Alfonsín, criou a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), que chegou a submeter alguns comandantes das Forças Armadas a julgamento.

O presidente seguinte, Carlos Menem, decretou em 1989 as leis "Ponto final" e "Obediência devida", para obter perdão a 216 militares e 64 membros das Forças de Segurança sob processos na Justiça.

Ao indultar, logo em seguida, lideranças dos movimentos de resistência armada, Menem abriu precedente para a famigerada "teoria dos dois lados" - assim como no Brasil, parte da sociedade acreditou que os crimes de lesa-humanidade praticados por agentes do Estado seriam da mesma natureza, ética e criminal, dos crimes cometidos por militantes de esquerda, considerados juridicamente como crimes comuns.

Entre avanços e retrocessos, a sociedade argentina promoveu a punição dos perpetradores de crimes hediondos.

Nos governos Kirchner (Néstor e depois Cristina) a Corte Suprema Argentina anulou as chamadas leis de "Ponto final" e "Obediência devida".

As "Leis de perdão" foram anuladas em 2003, e a Argentina tornou-se, até hoje, referência internacional de justiça contra autores de graves violações de direitos humanos.

Essas que o dramaturgo Eduardo Pavlovsky definiu da seguinte maneira: "Por cada um que tocamos, mil paralisados de medo; nós (i.e., os militares) atuamos por irradiação".

A paralisia gerada pela existência da tortura se irradia por toda a sociedade - daí o projeto ditatorial de liberar alguns sobreviventes da tortura para difundir o terror.

Em contrapartida, os julgamentos sepultaram de vez a versão cínica de que os desaparecidos são pessoas que, no dizer do ex-ditador Rafael Videla, "simplesmente deixaram de estar aí…”!

A difusão dessa e outras atitudes cínicas comprova a afirmação de Duhalde, para quem a máquina de desaparecimentos devastou a sociedade e a linguagem.

Ao colocar o cidadão comum em um beco sem saída, produz uma passividade conformada, análoga à dos muçulmanos dos campos de concentração nazistas: corpos ainda vivos, desabitados de uma alma - de um sujeito".

Diante desse conformismo mortífero, os julgamentos dos torturadores têm o valor de "ritos constitutivos" (na expressão de Rousseaux) da restauração democrática.

Os sobreviventes, testemunhas-vítimas, resgatam sua dignidade ao contribuir com a justiça contra a "máquina desaparecedora que devastou a identidade e a linguagem".

Diante de tal devastação, Fabiana Rousseaux problematiza a abordagem das vítimas sobreviventes.

Ela evoca o psicanalista uruguaio Marcelo Viñar: "será que quando uma vítima se constitui, já não se pode escutar [dela] outra coisa? [...] As vítimas levantam suas vozes para exigir ser escutadas como sujeitos”.

Com isso, o quebra-cabeças das violações e desaparecimentos começa a se compor; a sociedade levanta a cabeça e, paradoxalmente, se enriquece quando o horror vivido por alguns é restituído à memória coletiva.

Por fim, outra questão ainda se coloca para as vítimas: depois de ter sobrevivido às torturas, como sobreviver à memória do trauma?

Ou aos sintomas de pânico e depressão resultantes da tortura?

Não foram raros os suicídios entre os sobreviventes do Holocausto.

Primo Levi que observou em suas memórias como eram raros os suicídios nos campos de concentração - suicidou-se algum tempo depois do fim da guerra, assim como Bruno Bettelheim e Paul Celan.

Para Fabiana Rousseaux, o Estado redemocratizado tem a responsabilidade de promover assistência psicológica aos sobreviventes.

A própria Fabiana, entre 2010 e 2014, dirigiu o Centro de Assistência às Vítimas de Violações de Direitos Humanos Dr. Fernando Ulhoa.

Também nisso a Argentina se antecipou ao Brasil, ao implantar em nível nacional, desde 2003, uma política de memória, verdade, justiça e reparação.

No Brasil, apenas em 2012, durante a vigência da Comissão da Verdade, foram criadas as Clínicas do Testemunho que ofereciam às vítimas sobreviventes a possibilidade de se fazer escutar por psicólogos e psicanalistas.

Na via oposta à da escuta dos testemunhos, nas sociedades que, na redemocratização, "induziram suas famílias ao silêncio e não assumiram a responsabilidade coletiva da memória, as gerações posteriores sofrem, sem saber, os efeitos traumáticos da violência de Estado".

O Brasil, que nunca julgou e condenou os culpados pelas graves violações de direitos humanos cometidas entre 1964 e 1985, não criou "antídotos contra a barbárie". Não constituímos um legado do "nunca mais".

Me parece que sofremos, até hoje, do que Fernando Ulhoa chamou de "síndrome da resignação", ao constatar que "a primeira coisa que se perde é a coragem (depois...) o contentamento".

O retorno do ódio como leitmotif da política, desde o ano passado, e a adesão da sociedade brasileira a um projeto autoritário de governo poucos anos depois de nossa tardia CNV reabrir a chaga da ditadura militar provam o quanto tinha razão Fernando Ulhoa.

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TEMPO ESQUISITO - Maria Rita Kehl - págs. 135/138.

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