Da construção do mercado à concorrência como norma dessa construção da concorrência como norma da atividade dos agentes econômicos à concorrência como norma da construção do Estado e de sua ação e, por fim, da concorrência como norma do Estado-empresa à concorrência como norma da conduta do sujeito-empresa, essas são as etapas pelas quais se realiza a extensão da racionalidade mercantil a todas as esferas da existência humana e que fazem da razão neoliberal uma verdadeira razão-mundo.
Mas que o leitor não se engane: não se trata aqui de voltar ao tema habermasiano da "colonização do mundo vivido", simplesmente porque jamais existiu um "mundo da vida" (Lebenswelt) que não fosse sempre já pego em discursos ou invadido por dispositivos de poder.
Trata-se de mostrar a que ponto essa extensão, fazendo desaparecer a separação entre esfera privada e esfera pública, corrói até os fundamentos da própria democracia liberal.
De fato, esta última pressupunha certa irredutibilidade da política e da moral ao econômico, algo de que se encontra eco direto na obra de Adam Smith e Adam Ferguson.
Além do mais, pressupunha certa primazia da lei como ato do Legislativo e, nessa medida, certa forma de subordinação do poder Executivo ao poder Legislativo.
Também implicava, se não uma preeminência do direito público sobre o direito privado, ao menos uma consciência aguda da necessária delimitação de suas respectivas esferas.
Correlativamente, vivia de certa relação do cidadão com o "bem comum", ou "bem público". Por isso mesmo, pressupunha uma valorização da participação direta do cidadão nas questões públicas, em particular nos momentos em que está em jogo a própria existência da comunidade política.
A racionalidade neoliberal, ao mesmo tempo que se adapta perfeitamente ao que restou dessas distinções no plano da ideologia, opera uma desativação sem precedentes do caráter normativo destas últimas.
Diluição do direito público em benefício do direito privado, conformação da ação pública aos critérios da rentabilidade e da produtividade, depreciação simbólica da lei como ato próprio do Legislativo, fortalecimento do Executivo, valorização dos procedimentos, tendência dos poderes de polícia a isentar-se de todo controle judicial, promoção do "cidadão-consumidor" encarregado de arbitrar entre "ofertas políticas" concorrentes, todas são tendências comprovadas que mostram o esgotamento da democracia liberal como norma política.
Um dos principais sintomas dessa desativação é a importância que o tema da "boa governança" ganhou no discurso de gestão.
Toda a reflexão sobre a administração pública adquire um caráter técnico, em detrimento das considerações políticas e sociais que permitiriam evidenciar tanto o contexto da ação pública como a pluralidade das opções possíveis.
A concepção dos bens públicos, assim como os princípios de sua distribuição, é profundamente afetada.
A igualdade de tratamento e a universalidade dos benefícios são questionadas tanto pela individualização do auxílio e pela seleção dos beneficiados, na qualidade de amostras de um "público-alvo", quanto pela concepção consumista do serviço público.
As categorias da gestão tendem, nesse sentido, a ocupar o lugar dos princípios simbólicos comuns que até então se encontravam no fundamento da cidadania.
A única questão autorizada no debate público é a da capacidade de levar a cabo "reformas" cujo sentido não é explicitado, sem que se saiba muito bem quais resultados se tenta obter por essa ação sobre a sociedade.
Além do modo de gestão e suas ferramentas técnicas, a relação entre governantes e governados é radicalmente subvertida.
De fato, é toda a cidadania, tal como se construiu nos países ocidentais desde o século XVIII, que é questionada até em suas raízes.
É o que se vê em especial pelo questionamento prático de direitos até então ligados à cidadania, a começar pelo direito à proteção social, que foi historicamente estabelecido como consequência lógica da democracia política.
"Nada de direitos se não houver contrapartidas" é o refrão para obrigar os desempregados a aceitar um emprego inferior, para fazer os doentes ou os estudantes pagarem por um serviço cujo benefício é visto estritamente como individual, para condicionar os auxílios concedidos à família às formas desejáveis de educação parental.
O acesso a certos bens e serviços não é mais considerado ligado a um status que abre portas para direitos, mas o resultado de uma transação entre um subsídio e um comportamento esperado ou um custo direto para o usuário.
A figura do “cidadão" investido de uma responsabilidade coletiva desaparece pouco a pouco e dá lugar ao homem empreendedor.
Este não é apenas o "consumidor soberano" da retórica neoliberal, mas o sujeito ao qual a sociedade não deve nada, aquele que "tem de se esforçar para conseguir o que quer" e deve "trabalhar mais para ganhar mais", para retomarmos alguns dos clichês do novo modo de governo.
A referência da ação pública não é mais o sujeito de direitos, mas um ator autoempreendedor que faz os mais variados contratos privados com outros atores autoempreendedores.
Dessa forma, os modos de transação negociados caso a caso para "resolver os problemas" tendem a substituir as regras de direito público e os processos de decisão política legitimados pelo sufrágio universal.
Longe de ser "neutra", a reforma gerencial da ação pública atenta diretamente contra a lógica democrática da cidadania social; reforçando as desigualdades sociais na distribuição dos auxílios e no acesso aos recursos em matéria de emprego, saúde e educação, ela reforça as lógicas sociais de exclusão que fabricam um número crescente de "subcidadãos" e "não cidadãos".
Seria um erro, porém, ver a racionalidade neoliberal somente como uma contestação da "terceira fase" da democratização, a que presenciou a instauração de uma "cidadania social" no século XX, completando a "cidadania civil" do século XVIII e a "cidadania política" do século XIX.
O welfarismo não foi apenas uma simples gestão biopolítica das populações, tampouco teve como consequência apenas o consumo de massa na regulação fordista do pós-guerra; como bem sublinhou Robert Castel, a razão do welfarismo era a integração dos assalariados no espaço político mediante o estabelecimento das condições concretas da cidadania.
Portanto, a corrosão progressiva dos direitos sociais do cidadão não afeta apenas a chamada cidadania "social", ela abre caminho para uma contestação geral dos fundamentos da cidadania como tal, na medida em que a história tornou esses fundamentos solidários uns com os outros. Com isso, ela leva a uma nova fase da história das sociedades ocidentais.
Sob esse aspecto, é espantoso constatar a que ponto a contestação dos direitos sociais está intimamente ligada à contestação prática dos fundamentos culturais e morais, e não só políticos, das democracias liberais.
O cinismo, a mentira, o menosprezo, a aversão à arte e à cultura, o desleixo da linguagem e dos modos, a ignorância, a arrogância do dinheiro e a brutalidade da dominação valem como títulos para governar em nome apenas da "eficácia".
Quando o desempenho é o único critério de uma política, que importância tem o respeito à consciência e à liberdade de pensamento e expressão?
Que importância tem o respeito às formas legais e aos procedimentos democráticos?
A nova racionalidade promove seus próprios critérios de validação, que não têm mais nada a ver com os princípios morais e jurídicos da democracia liberal.
Sendo uma racionalidade estritamente gerencial, vê as leis e as normas simplesmente como instrumentos cujo valor relativo depende exclusivamente da realização dos objetivos.
Nesse sentido, não estamos lidando com um simples "desencantamento democrático" passageiro, mas com uma mutação muito mais radical, cuja extensão é revelada, a sua maneira, pela dessimbolização que afeta a política.
É nesse sentido que Wendy Brown tem sólidas razões para utilizar o neologismo "desdemocratização": a inutilização prática das categorias fundadoras da democracia liberal, tal como se manifesta em especial na suspensão da lei e na transformação do estado de exceção em estado permanente, tão bem analisadas por Giorgio Agamben, não equivale e nem prenuncia a instauração de um novo regime político.
Ao contrário, é a tradução de uma propensão acentuada da nova lógica normativa a apagar as diferenças entre regimes políticos, a ponto de relegá-los a uma relativa indiferenciação, a qual “in fine” ameaça até mesmo a pertinência da noção de "regime político" herdada da tradição clássica.
Contudo, devemos notar que essa indiferença, longe de ser um simples "acidente de percurso", está inscrita desde o princípio no projeto intelectual e político do neoliberalismo.
A oposição "democracia versus totalitarismo", contemporânea da Guerra Fria, cuja melhor formulação foi dada por Raymond Aron's, ocultou outra oposição igualmente importante entre duas formas de democracia.
De fato, para Friedrich Hayek, a única oposição pertinente é entre liberalismo e totalitarismo, não entre democracia e totalitarismo.
Fundamentar essa nova oposição exigiria, em primeiro lugar, reduzir a democracia a um procedimento de seleção dos dirigentes que deve ser julgado, antes de tudo, por seu resultado prático, e não pelos valores que pretensamente o fundamentam.
Enquanto a democracia diz respeito apenas à maneira de escolher os dirigentes (por eleição), o liberalismo define-se essencialmente pela exigência de uma limitação do poder (ainda que seja o da maioria).
Consequentemente, mesmo que os dirigentes sejam eleitos pela maioria, basta que o poder exercido por essa maioria seja ilimitado para que haja uma "democracia totalitária".
Inversamente, o liberalismo pode ser democrático ou autoritário, conforme o modo de designação dos dirigentes.
No entanto, seja democrático, seja autoritário, o liberalismo é sempre preferível à "tirania da maioria".
O que está em questão aqui é a ideia de que a democracia se identifica com a soberania do povo.
Para Hayek, há aí uma confusão tipicamente "construtivista" entre a origem da escolha dos representantes e o campo legítimo de exercício do poder - a doutrina da soberania do povo, na realidade, só pode resultar no reconhecimento do direito do governo de intervir de forma ilimitada nos negócios da coletividade, ao capricho das maiorias eleitorais.
Não surpreende, portanto, que a atribuição direta da liberdade a um povo, tão essencial à especificidade do conceito de liberdade política, pareça suspeita enquanto tal a Hayek.
Dizer de um povo que ele é livre é simplesmente operar uma "transposição do conceito de liberdade individual a grupos de homens considerados como um todo".
Ora, como observa ainda Hayek, "um povo livre nesse sentido não é necessariamente um povo de homens livres": um indivíduo pode ser oprimido num sistema democrático, assim como pode ser livre num sistema ditatorial.
O valor supremo, portanto, é a liberdade individual, compreendida como a faculdade dada aos indivíduos de criar para si mesmos um domínio protegido (a "propriedade"), e não a liberdade política, como participação direta dos homens na escolha de seus dirigentes.
O essencial aqui é que a redução da democracia a um modo técnico de designação dos governantes permite que ela não seja mais vista como um regime político distinto dos outros e, nesse sentido, já abre caminho para a relativização dos critérios de diferenciação comumente admitidos na classificação dos regimes políticos.
Se, ao contrário, sustentarmos que a democracia repousa sobre a soberania de um povo, o que aparece então é que, enquanto doutrina, o neoliberalismo é, não acidentalmente, mas essencialmente, um antidemocratismo.
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(A nova razão do mundo - Ensaio sobre a sociedade neoliberal - Pierre Dardot e Christian Laval - págs. 379/384)