Nós, humanos, nos acostumamos com tudo. Melhor: com quase tudo.
Há vida humana adaptada ao frio do Ártico e ao sol do Saara, à Floresta Amazônica, ou o que resta dela, assim como às estepes russas.
Há vida humana em palacetes e palafitas, em academias de ginástica e UTIs de hospitais.
E o pulso ainda pulsa.
Há pessoas sequestradas por psicopatas durante décadas, há meninas e meninos estuprados pelo tio ou pelo patrão da mãe. Sem coragem de contar, porque podem levar a culpa pelo crime do adulto.
E o pulso ainda pulsa.
Mas o Brasil tenham dó! - tem caprichado no quesito do horror já faz tempo.
Naturalizamos a escravidão, por exemplo. Durante trezentos anos!
E depois da abolição naturalizamos a miséria em que ficaram os negros até então escravizados: jogados nas ruas de uma hora para outra, sem trabalho, sem casa, sem ter o que comer.
Pensem bem: o fazendeiro que explorava a mão de obra de, digamos, 2 mil escravizados, ao se ver obrigado a pagar um salário de fome (até hoje?) aos que se tornaram trabalhadores livres iria fazer o quê? Ficar no prejuízo? Claro que não.
Decidiu forçar ainda mais o ritmo de trabalho de uns duzentos ou trezentos mais fortes e mandar os outros para o olho da rua.
Sem reparação, sem uma ajuda do governo para começar a vida, sem nada.
Daí naturalizarmos também um novo preconceito: os negros são vagabundos. Quando não são ladrões.
Ou então, incompetentes: não são capazes de aproveitar as oportunidades de progredir, acessíveis a todos os cidadãos de bem.
Até hoje, moradores de rua, pedintes e assaltantes amadores (os profissionais moram nos Jardins ou em Brasília) são identificados pelos vários tons de pele entre bege e marrom.
É raro encontrar um louro entre eles.
O mesmo vale para os trabalhadores com "contratos" precários: todos afrodescendentes. Achamos normal.
A carne mais barata do mercado é a carne preta.
Para não cometer injustiças, nesse patamar estão também muitos nordestinos que chegaram à região Sudeste do país como retirantes de alguma seca.
Às vezes acontece alguma zebra e um deles vira presidente da República.
Cadeia nele.
Naturalizamos duas ditaduras, que se sucederam com intervalo democrático de apenas dezenove anos.
Daí naturalizarmos as prisões arbitrárias também.
"Alguma ele fez...": esse era o título de uma série satírica do grande Carlos Estevão, na revista Pif-Paf. A legenda era o comentário covarde de pessoas de bem, que observavam um pobre coitado apanhando da polícia ou arrastado pelos meganhas sem nenhuma ordem (oficial) de prisão.
Naturalizamos a tortura também, para sermos coerentes.
Afinal, ao contrário dos outros países do Cone Sul, fomos gentis com "nossos" ditadores e seus escalões armados. Não julgamos ninguém.
Quem morreu, morreu. Quem sumiu, sumiu.
Choram Marias e Clarices na noite do Brasil.
Daí naturalizarmos também - por que não? que nossas polícias, findo o período do terror de Estado, continuassem militarizadas.
Como se estivessem em guerra.
Contra quem?
Oras: contra o povo. Mas não contra o povo todo - alguns, nessa história, sempre foram menos iguais que os outros. Os pobres, para começar. Entre eles, é claro, os negros.
Esses elementos perigosos para a sociedade, cujos antepassados não vieram para cá passeio.
Aprendizes a do período ditatorial prosseguiram com práticas de tortura nas delegacias e presídios.
De vez em quando, some um Amarildo.
De vez em quando um adolescente infrator é amarrado num poste, pela polícia ou por cidadãos de bem.
Tolerantes, mas nem tanto
Mas calma aí, nem tudo se admite assim, no jeitinho brasileiro: que uma presidente mulher tenha sido eleita em 2010 já foi uma grande concessão.
Pior, uma presidente vítima de tortura no passado - bom, se ela não nos lembrar disso, a gente pode deixar pra lá.
Mas a coisa vai além: uma presidente mulher, vítima de tortura no passado, que resolve colocar em votação no Congresso - e aprovar! - a instauração de uma Comissão da Verdade??? Aí já é demais.
Por isso mesmo achamos normal que um capitão reformado (alguma ele fez?) tenha desafiado a Câmara dos Deputados ostentando durante uma audiência pública o livro de Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos torturadores mais cruéis daquele período.
Parece que isso se chama quebra de decoro parlamentar, mas os colegas do provocador não quiseram ser intolerantes.
"Brasileiro é bonzinho", como dizia uma personagem representada por Kate Lyra no Por isso.
Também achamos normal que a tal presidente, que provocou os brios das pessoas de bem ao instaurar uma comissão para investigar crimes de lesa-humanidade praticados naquele passado esquecido, tenha sofrido impeachment no meio de seu segundo mandato.
Seu crime: "pedaladas fiscais".
Parece que, antes de virar crime, essa era uma prática comum e às vezes até necessária, chamada de "rolar a dívida".
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(Tempo esquisito - Maria Rita Kehl - págs. 29/31)