O "coaching" é a marca e ao mesmo tempo o meio dessa analogia constante entre esporte, sexualidade e trabalho.
Foi esse modelo, talvez mais do que o discurso econômico sobre a competitividade, que permitiu "naturalizar" esse dever de bom desempenho e difundiu nas massas certa normatividade centrada na concorrência generalizada.
No dispositivo em questão, a empresa se identifica com os campeões, os quais patrocina e dos quais explora a imagem, e o mundo do esporte, como bem sabemos, torna-se um um laboratório do business sem constrangimentos.
Os esportistas são encarnações perfeitas do empreendedor de si, que não hesitam um instante sequer em se vender a quem pagar mais, sem muitas considerações a respeito da lealdade e da fidelidade.
Mais ainda, o cuidado com o corpo, o aprimoramento de si mesmo, a procura de sensações fortes, o fascínio pelo "extremo", a preferência pelo lazer ativo e a superação idealizada dos "limites" indicam que o modelo esportivo não se reduz ao espetáculo recreativo de "poderosos" devorando uns aos outros.
Alguns jogos televisivos, os chamados "reality TV", também ilustram essa "luta pela vida", em que apenas os mais espertos e, com frequência, os mais cínicos conseguem "sobreviver" (Survivor, e sua versão francesa Koh Lanta), reativando num contexto muito diferente o mito de Robinson Crusoe e a "sobrevivência dos mais aptos" em situações de perigo extraordinárias.
Esse tipo de "robinsonada" contemporânea radicaliza a nova norma social, mas mostra à perfeição um imaginário em que desempenho e gozo são indissociáveis.
O sujeito neoliberal é produzido pelo dispositivo "desempenho/gozo".
Inúmeros trabalhos enfatizam o caráter paradoxal da situação subjetiva.
Os sociólogos multiplicam os "oximoros" para tentar dizer do que se trata: "autonomia controlada", "comprometimento coagido".
No entanto, todas essas expressões pressupõem um sujeito exterior e anterior à relação específica de poder que o constitui precisamente como sujeito governado.
Quando poder e liberdade subjetiva não são mais contrapostos, quando estabelece que a arte de governar não consiste em em puro objeto passivo, mas conduzir um sujeito a fazer o que aceita querer fazer, a questão se apresenta sob uma nova luz.
O novo sujeito não é mais apenas o do circuito produção/poupança/consumo, típico de um período consumado do capitalismo.
O antigo modelo industrial associava - não sem tensão - o ascetismo puritano do trabalho, a satisfação do consumo e a esperança de um gozo tranquilo dos bens acumulados.
Os sacrifícios aceitos no trabalho (a "desutilidade") eram comparados com os bens que poderiam ser adquiridos graças à renda (a "utilidade"). Como lembramos antes, Daniel Bell mostrou a tensão cada vez mais forte entre essa tendência ascética e esse hedonismo do consumo, uma tensão que, segundo ele, chegou ao ápice nos anos 1960.
Ele entreviu, sem ter ainda condições de observar, a resolução dessa tensão num dispositivo que ia identificar o desempenho ao gozo e cujo princípio é o do "excesso" e da "autossuperação".
Não se trata mais de fazer o que se sabe fazer e consumir o que é necessário, numa espécie de equilíbrio entre desutilidade e utilidade.
Exige-se do novo sujeito que produza "sempre mais" e goze "sempre mais" e, desse modo, conecte-se diretamente com um "mais-de-gozar" que se tornou sistêmico".
A própria vida, em todos os seus aspectos, torna-se objeto dos dispositivos de desempenho e gozo.
Esse é o duplo sentido de um discurso gerencial que faz do bom desempenho um dever e de um discurso publicitário que faz do gozo um imperativo.
Ressaltar apenas a tensão entre ambos seria esquecer tudo o que estabelece certa equivalência entre o dever do bom desempenho e o dever do gozo, seria subestimar o imperativo do "sempre mais" que visa a intensificar a eficácia de cada sujeito em todos os domínios: escolar e profissional, mas também relacional, sexual etc.
"We are the champions" [Nós somos os campeões] esse é o hino do novo sujeito empresarial. Da letra da música, que a sua maneira anuncia o novo curso subjetivo, devemos guardar sobretudo esta advertência: "No time for losers" [Não há tempo para perdedores].
A novidade é justamente que o “loser” é o homem comum, aquele que perde por essência.
De fato, a norma social do sujeito mudou. Não é mais o equilíbrio, a média, mas o desempenho máximo que se torna o alvo da "reestruturação" que cada indivíduo deve realizar em si mesmo.
Não se pede mais do sujeito que seja simplesmente "conformado", que vista sem reclamar a indumentária ordinária dos agentes da produção econômica e da reprodução social.
Não só o conformismo não é mais suficiente, como se torna suspeito, na medida em que se ordena ao sujeito que "se transcenda", que "leve os limites além", como dizem os gerentes e os treinadores.
A máquina econômica, mais do que nunca, não pode funcionar em equilíbrio e, menos ainda, com perda.
Ela tem de mirar um "além", um "mais", que Marx identificou com "mais-valor". Até então, essa exigência própria do regime de acumulação do capital não havia desdobrado todos os seus efeitos.
Isso aconteceu quando o comprometimento subjetivo foi tal que a procura desse "além de si mesmo" tornou-se a condição de funcionamento tanto dos sujeitos como das empresas.
Daí o interesse da identificação do sujeito como empresa de si mesmo e capital humano: a extração de um "mais-de-gozar", tirado de si mesmo, do prazer de viver, do simples fato de viver, é que faz funcionar o novo sujeito e o novo sistema de concorrência.
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(A nova razão do mundo - Ensaio sobre a sociedade neoliberal - Pierre Dardot e Christian Laval - págs. 354/356)