Padre Jaime, assim como outros religiosos católicos europeus, chegou ao país pouco tempo depois do início dos tempos sombrios da ditadura militar.
Desde 1964, o Brasil havia entrado no modo guerra, as Forças Armadas governavam o país propondo uma nova ordem por meio de tanques e baionetas contra os comunistas.
A política saía de cena para dar lugar ao conflito contra os opositores, que viravam inimigos.
Com a Revolução Cubana, liderada por Fidel Castro e Che Guevara, em 1959, o socialismo bateu às portas do continente americano.
O povo se tornou uma ameaça em potencial, constantemente sujeito ao doutrinamento de líderes esquerdistas.
Para as Forças Armadas, era preciso impedir a doutrinação socialista para evitar a revolução.
Em Cuba, na Indochina e na Argélia, grandes exércitos tinham sido derrotados por pequenos grupos armados movidos pela ideologia marxista.
O povo brasileiro não podia ser insuflado por essas mesmas ideias incendiárias.
Para os líderes da ditadura, em vez de a população ser ouvida e determinar os rumos da nação, pelo voto, ela deveria ser tutelada.
Para isso, o marxismo, capaz de reformatar as mentes, despertar crenças e paixões numa espécie de religiosidade laica, deveria ser proibido.
Manifestações simpáticas na imprensa ou na arte deveriam ser censuradas. Escolas e universidades deveriam ser expurgadas.
O horror que as Forças Armadas tinham do potencial incendiário das utopias esquerdistas ficou patente na reação exagerada ao método de alfabetização criado pelo educador Paulo Freire, que pretendia erradicar o analfabetismo no Brasil, uma das grandes chagas nacionais.
Freire estava longe de ser um radical. Assim como os padres progressistas, ele era, sobretudo, um reformista, não queria mudar o sistema, mas melhorá-lo.
A maior parte de sua carreira como educador tinha sido feita no Serviço Social da Indústria (Sesi), auxiliando patrões a educar seus funcionários.
Ele e sua esposa Elza integravam os movimentos sociais da Ação Católica, que desde os anos 1950 fomentava ideias inovadoras na Igreja, organizando a formação de pequenos grupos nas paróquias para elaborar um tipo de reflexão bíblica que ajudasse os pobres a transformar suas condições sem depender da caridade e do assistencialismo dos mais ricos.
Anos depois, essas ideias religiosas seriam sistematizadas pelos padres progressistas na Teologia da Libertação.
O alicerce do modelo pedagógico de Paulo Freire estava na consideração de que a realidade vivida pelo estudante deveria ser o ponto de partida da construção de conhecimento.
O professor deveria descer do pedestal de detentor exclusivo do conhecimento para ter contato com os elementos do cotidiano dos alunos e, por meio deles, estimulá-los a participar de forma ativa do processo de aprendizado.
O aluno pedreiro poderia aprender a ler partindo de palavras próprias do universo da construção civil; a cozinheira, de expressões e lógicas de suas práticas e receitas; o comerciante, de suas técnicas de vendas; o pescador, de sua experiência nas águas e assim por diante.
O pensamento crítico dos alunos em relação à sua própria realidade era capaz de despertar a curiosidade de aprender e de acelerar o processo.
O conhecimento não era algo superior, inacessível, ensinado de cima para baixo, como se a mente do aprendiz fosse uma pedra bruta a ser esculpida pelo mestre.
Aprender exigia interação, diálogo e participação ativa do estudante, caso contrário era mera doutrinação, irreal e inóspita.
O medo militar do potencial revolucionário do método freiriano começou a surgir às vésperas do golpe, quando o educador o aplicou no sistema público de educação na prefeitura do Recife, por intermédio dos programas de cultura liderados pelo progressista Miguel Arraes.
Em seguida, em 1963, a preocupação aumentou. Paulo Freire foi convidado pelo governador do Rio Grande do Norte, Aluízio Alves, da União Democrática Nacional (UDN), para aplicar seu método na pequena cidade de Angicos.
A expectativa era de que alfabetizasse 380 pessoas em um prazo de quarenta horas de aulas. Dois meses depois, encerrado o curso, ninguém menos do que o presidente João Goulart foi à cerimônia para entregar os certificados aos formandos.
Percebendo o potencial e os efeitos políticos do programa, o presidente levou Paulo Freire a Brasília para replicar o modelo de alfabetização em todo o país.
O objetivo era alfabetizar, ao longo de 1964, quase 2 milhões de adultos. Na época, analfabeto não podia votar, e os militares, que já achavam o presidente subversivo, intuíram que com a alfabetização da população ele se tornaria eleitoralmente imbatível.
Logo em seguida ao golpe, Freire foi preso e forçado a partir para o exílio, de onde só voltaria quinze anos depois.
Nesse contexto, havia duas visões de mundo em disputa, associadas a projetos políticos opostos, que continuariam influentes no futuro do Brasil.
Elas estavam vinculadas a concepções distintas de autoridade e de produção de obediência.
A concepção democrática, que submergiria durante a ditadura, acreditava em um poder que representasse os interesses da coletividade, e, para isso, a autoridade precisava saber o que o povo queria para poder representá-lo, sua vez, precisava ter consciência da própria realidade para tomar decisões de forma racional.
Nesse sentido, o sucesso da autoridade democrática depende de uma educação libertadora, crítica, que encoraje perguntas e apoie uma postura atenta, em busca permanente por respostas.
De outro lado, a concepção hierárquica de autoridade é vertical e associada a uma ordem subserviente, voltada para o funcionamento do sistema. Para ela o povo deveria obedecer às regras, trabalhar, dispor de uma educação voltada ao aumento da produtividade, consumir e criar suas famílias ordeiramente.
Mesmo se não tivesse educação, casa, esgoto e comida, ele deveria obedecer.
Caso contrário, se insistisse em subverter ou sabotar o sistema pela revolução ou pelo crime violento, corria o risco de ser preso, torturado ou morto pelas forças armadas, pela polícia ou por grupos de extermínio.
O pentecostalismo, que ainda começava a se popularizar e a se tornar politicamente influente, evitou se posicionar durante a ditadura militar.
Para esse grupo de religiosos, as autoridades públicas, democráticas ou autoritárias deviam ser respeitadas e obedecidas.
"Crente não se mete em política" era um dos jargões do período.
Tanto igrejas pentecostais mais tradicionais, Assembleias de Deus e a Congregação Cristă, como as denominações mais novas, como Deus é Amor, Evangelho Quadrangular e outras, evitavam misturar fé e política.
Em suas ações, buscavam dar alento, propósito, autocontrole e curar a saúde de seus fiéis, que chegavam do campo e precisavam sobreviver na miséria das cidades, sem acesso a hospitais, desenraizados, tentando costurar novas redes de apoio.
O golpe dado pelos militares, com o apoio de parte dos civis, representava a vitória parcial do projeto vertical, que definiria os rumos nacionais de cima para baixo, apostando na garantia da ordem para promover o progresso.
O Estado autocrático que emergiu durante a ditadura militar agiu como indutor do desenvolvimento industrial brasileiro para acabar com o atraso nacional.
O consequente crescimento econômico geraria riqueza e colocaria o país lado a lado com as nações mais desenvolvidas do mundo, fazendo com que a ameaça comunista diminuísse.
A salvação viria das elites, mas, para alcançar esse objetivo, era preciso fazer com que o sistema funcionasse.
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(A FÊ E O FUZIL - Crime e religião no Brasil do século XXI - Bruno Paes Manso - págs. 148/152)