Dezembro 03, 2024

"Espelho Partido", de Pedro Salgueiro para O POVO

Corria a primeira metade dos anos 1970, e uma terrível ditadura militar varria o país, mas nós – reles meninos de Tamboril no interior do Ceará – ignorávamos tudo isso, sequer desconfiávamos que bem ali de lado, em Crateús, o heroico paraibano-cearense-brasileiro Dom Fragoso resistia bravamente junto com seus padres e religiosos das Comunidades Eclesiais de Base. Queríamos mesmo era correr estradas, varrer caminhos, se esconder em quintais, tomar banho de açude nos raros invernos, e caçar passarinhos...

Sabendo das traquinagens, meu pai insistia vigilante, às manhãs no colégio, às tarefas de cuidar da vaca, limpar o quintal, aguar plantas e, sem folga, às horas das lições de casa, sagradas e severamente vigiadas por minha mãe. Mas tínhamos as possibilidades das fugas, que se renovavam em mil artimanhas e criatividades: mentíamos muito para lograr êxitos.

E dessas fugas estão quase todas as nossas lembrança de infância, raras são as memórias guardadas das “horas oficiais” de bons meninos, porém os momentos forjados a fórceps ficaram grudados na mente e mesmo depois de 40 anos escorrem vivas nas noites de insônia, pelas frestas do tédio.

Só uma obrigação nos dava interesseiro prazer, nos dias de feira do sábado meu pai nos levava, a mim e ao meu irmão, para vigiar as bicicletas no quintal da sua pequena sapataria, que era dividido ao meio entre os ganhos de algumas moedas já no meio da tarde: meu irmão, sempre muito zeloso, guardava cada centavo; eu, mais desastrado, corria para comprar o que desse o apurado: fosse bola, calção de jogador, canivete... Mas um dia descobri uma banca que vendia pequenos espelhos redondos, com fundos que me causava êxtase: escudos dos clubes de futebol e mulheres peladas.

Passei a andar sempre com um desses espelhinhos mágicos no bolso do calção, de dia me deslumbrava o mundo através de seus muitos reflexos e ângulos invertidos, pela primeira vez na vida conhecia o outro lado das coisas comuns, usava mais a imaginação que o real das figuras – que deixava para as horas noturnas, destas vezes usando o inverso do vidro, viajava frenético nas imagens de times e garotas.

Entretanto logo passei a fugir dos espelhos: num começo de tarde uma leva de meninos corria em direção à cadeia pública no bairro dos Pereiros, ligeiro atalhei a dianteira que já passava no velho hospital abandonado na entrada das Pedrinhas: cheguei ao pelotão de curiosos que formava fila na frente do presídio – uns entravam com olhos arregalados de curiosidades e outros saíam com os olhos arregalados de medos: chegou minha vez de pegar o pequeno espelho quebrado e tentar, nervoso, localizar o preso que se enforcara com o punho da rede no canto mais escondido à esquerda das grossas grades da cela.

O que vi ou o que imaginei ter visto na imagem partida e embaçada daquele espelho trêmulo ainda hoje nem desconfio – mais tarde passei temeroso, e só olhei da janela, no velório na casa de dona Sé, parenta distante do caçador injustamente acusado de roubo, que não suportou o peso da vergonha e se jogou de joelho naquele abismo no canto mais escuro do desespero.

Sei que nunca mais possuí espelhos, enterrei todos (mas antes os quebrei, até esqueci-me de salvar o papel plastificado das figuras de trás) debaixo do mulungu no fundo do quintal: ainda hoje tenho medo de espelhos quebrados... E do que possa ver de estranho em seus fundos partidos!

 

Postado por Raymundo Netto às 18:36 

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Última modificação em Terça, 26 Abril 2022 09:00
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